Natalio Cosoy
BBC Mundo
Depois da trégua entre governo e oposição durar menos de um dia, manifestantes voltaram às ruas
Ao mesmo tempo que ameaçam a Ucrânia com sanções, Estados Unidos e União Européia pedem paz e diálogo. Enquanto isso, o presidente russo Vladimir Putin liga para o presidente ucraniano Viktor Yanukovych enquanto lhe envia dinheiro e baixa o preço do gás vendido ao país. Por fim, o vice-presidente americano, Joe Biden, também chama Yanukovych para que pedir que ele não reprima os manifestantes. O que é que a Ucrânia tem para que todos esses atores da cena política global estejam tão dispostos a agir?
Para muitos, o país é o vértice geográfico onde se disputa uma nova versão da Guerra Fria.
O conflito na Ucrânia já deixou ao menos 40 mortos e centenas de feridos nos últimos dias. Os choques entre manifestantes e a polícia se tornaram constantes, especialmente na capital, Kiev. E uma recente tentativa de trégua fracassou.
Tudo começou em novembro, quando Yanukovych decidiu recusar um acordo que aprofundaria os laços do país com a União Europeia (UE) e era negociado havia três anos. Em troca, o presidente preferiu se aproximar da Rússia. Ou tudo teria começado antes?
Durante quase todo o século 20, a Ucrânia fez parte da União Soviética, até sua independência em 1991.
Desde então, o país passou a olhar em uma outra direção, do Oriente para o Ocidente, da Rússia para a União Europeia, tendo os exemplos de Polônia, Eslováquia e Hungria - todos membros da União Europeia – em seu horizonte. Mas a Ucrânia não completa esse movimento porque duas forças contrárias o paralisam.
De um lado, está a parte ocidental do país, onde vivem as gerações mais jovens e de onde partiu o movimento de aproximação da UE. Do outro, está a parte oriental e sul, mais próxima da Rússia, onde se fala russo e não ucraniano e prevalece um sentimento de nostalgia dos anos de integração soviética. Por fim, de cada um desses lados, existem os interesses e pressões de grandes potências mundiais.
Datas importantes
21 de novembro de 2013: a Ucrânia suspende as preparações de um acordo comercial com a União Européia; Começam os protestos.
30 de novembro de 2013: a polícia de choque age contra os manifestantes, deixando dezenas de pessoas feridas e intensificando a tensão no país.
17 de dezembro de 2013: a Rússia concorda em comprar títulos do governo da Ucrânia e em baixar os preços do gás vendido ao país.
25 de dezembro de 2013: há novos protestos depois que a jornalista e ativista contrária ao governo Tetyana Chornovol fica ferida.
19 de janeiro de 2014: os protestos ficam mais violentos; Manifestantes colocam fogo em ônibus da polícia e lançam coquetéis molotov, enquanto os policiais respondem com balas de borracha, gás lacrimogênio e canhões d’água; Vários morrem nos dias seguintes.
18 de fevereiro de 2014: o dia mais sangrento dos protestos, com a morte de vários manifestantes e policiais.A Ucrânia depende da Rússia para abastecer-se de gás. Além disso, por seu território passam dutos que transportam os gás russo para a União Europeia.
Muitos analistas acreditam que a crise do gás ocorrida entre 2006 e 2009 foi uma consequência das tensões políticas que já existiam na época na Ucrânia, em razão da divergência quanto a aproximar-se da União Europeia ou da Rússia.
Essas tensões estavam no coração da Revolução Laranja de 2004, na qual o atual presidente Viktor Yanukovych perdeu poder enquanto líderes mais favoráveis ao Ocidente, como os políticos Viktor Yaschenko e Yulia Tymoshenko, subiram ao poder.
Mas esse políticos não conseguiram satisfazer as expectativas populares, o que levou Yanukovych a ganhar as eleições de 2010.
“Eram corruptos, incompetentes. Então as pessoas votaram em Viktor Yanukovych”, disse Edward Lucas, editor internacional da revista The Economist e autor do livro “A Nova Guerra Fria: a Rússia de Putin e sua ameaça ao Ocidente”, ao programa PM da Rádio 4 da BBC.
“Infelizmente, isso abriu a porta para a Rússia, e a Rússia forçou a Ucrânia a recusar o acordo comercial com a União Europeia e levou a Ucrânia para o seu lado”, acrescentou Lucas.
Em uma reunião em 17 de dezembro de 2013 entre Putin e Yanukovych, a Rússia se comprometeu a comprar o equivalente a R$ 36 bilhões em títulos do Estado ucraniano e a reduzir o preço do gás vendido ao país.
Vladimir Putin (dir.), presidente da Rússia, vê na Ucrânia do presidente Yanukovych uma parceira estratégica
A Rússia é o principal parceiro comercial da Ucrânia. Em 2012, segundo informações oficiais, as exportações do país para a Rússia foram de R$ 165 bilhões, enquanto as importações vindas da Rússia somaram R$ 203 bilhões.
Ao mesmo tempo, a UE representa um terço do comércio exterior da Ucrânia.
Em 2012, o país exportou R$ 48 bilhões para o bloco, do qual comprou produtos e serviços num valor total de R$ 78 bilhões, segundo números da Comissão Europeia. A maioria das exportações ucranianas para o bloco são beneficiadas por um sistema de isenções tarifárias.
Mas, para Mark Mardell, editor da BBC para a América do Norte, o assunto vai além do comércio exterior. “A batalha pela Ucrânia é sobre a influência e o alcance do Ocidente no mundo”, diz.
“Desde a queda da União Soviética, a Rússia se enfraqueceu perante o Ocidente”, afirma Mandell. “Não apenas ex-aliados como Polônia ou República Tcheca hoje são parte da UE, mas também ex-membros da URSS, como Lituânia e Letônia, se uniram ao bloco. E agora um aliado histórico russo, a Sérvia, decidiu fazer o mesmo.”
O chanceler russo criticou a "interferência" do Ocidente na crise da Ucrânia
A Rússia não pretende dar o braço a torcer em relação à Ucrânia. O chanceler russo Sergei Lavrov disse nos últimos dias: “Muitos países ocidentais tentam interferir de todas as formas, encorajam a oposição a agir ilegalmente, até mesmo flertam com os militantes, dão ultimatos, ameaçam com sanções”.
Já em 2010, a Ucrânia firmou com a Rússia um acordo que determinou um desconto de 30% no gás russo vendido ao país. Em troca, a Ucrânia estendeu por 25 anos o arrendamento da cidade de Sebastopol, no Mar Negro, onde a Rússia tem uma importante base naval.
Os manifestantes contrários a Yanukovych acreditam além de tudo que o presidente está encaminhando o país rumo à sua inclusão na União Euroasiática, uma união alfandegária impulsionada por Putin, da qual fazem parte a Bielorrússia e o Cazaquistão. Tanto Putin quanto Yanukovych negam essa acusação.
Lucas, da The Economist, acredita que Putin e sua equipe no Kremlin “nunca aceitaram os termos do acordo de 1991, após o colapso da União Soviética”. “Eles querem recuperar uma parte da Europa que eles acreditam pertencer a eles, ser parte de sua esfera de influência”.
Se isso acontecesse, isso “pode abalar o fornecimento de gás e petróleo da Europa”, diz.
“O oeste do país não aceitará o mando de Moscou ou de Kiev, se for em nome de Moscou; eles travaram uma disputa de guerrilha por dez anos entre 1945 e 1955, que foi esmagada brutalmente por Stalin”.
Tanto Lucas quanto Mardell, da BBC, enxergam uma falta de firmeza nas posturas da União Europeia e dos EUA. Para Mardell, a “Europa exibe fraquezas”, e “Barack Obama dá a entender que não se interessa pelo que acontece no exterior”.
“O som mais inquietante nas ruas de Kiev não é o dos tiros ou das explosões, mas o do silêncio”, disse Steve Rosenberg, enviado da BBC à Ucrânia, na última quarta-feira no rádio.
No centro da cidade, não havia automóveis, apenas pessoas caminhando pelas calçadas.
Era como se as coisas estivessem em suspenso, o ar parado, à espera de uma definição, se o país irá pender para o leste ou para o oeste.
BBC Brasil