quarta-feira, 14 de março de 2012

Rei Sol

Rei Sol
Durante milênios o homem adorou o Sol. Nos últimos 500 anos, começou a conhecê-lo. Dele, a Terra recebe algo como a energia de 10 bilhões de Itaipus. E isso é apenas uma ínfima parcela da luz e calor que emite. Sem ele nenhuma forma de vida existe 

Flávio Dieguez 

Em apenas 1 segundo, o volume de vapor que se forma sobre os rios e plantas da floresta amazônica equivale a quase 200 mil toneladas. Isso é mais do que o próprio rio Amazonas despeja no mar em qualquer momento: 160 mil toneladas por segundo. Lado a lado, essas duas grandes correntes de água criam imponente sistema de circulação tão essencial à sobrevivência da maior floresta do mundo quanto as artérias para o corpo humano. Há cerca de 200 milhões de anos — idade aproximada da própria mata —, o sistema vem funcionando com incrível regularidade e eficiência. Mas o espetáculo dessas forças perde todo o brilho e grandeza quando comparado com a sua fonte de energia — o Sol.

Vista da superfície do astro-rei, a Terra é um irrisório grão de areia girando à remota distância de 150 milhões de quilômetros. Mesmo assim, a ínfima parcela de luz e calor que efetivamente alcança o planeta — em vez de perder-se em outras direções no espaço vazio — é suficiente para dar vida e movimento aos oceanos, ventos, florestas, a cada um e a todos os organismos. Essa energia, que os antigos atribuíam aos deuses, pode hoje ser calculada com precisão. Equivale à eletricidade que seria gerada por 10 bilhões de hidrelétricas do porte de Itaipu. Não admira que o homem primitivo das mais diversas latitudes — e o já nem tão primitivo assim — tenha adorado o Sol sobre todas as coisas, num culto feito de reverência e temor, a ponto de incluir sacrifícios humanos.

Dos 2 milhões de anos que já dura a saga do homem na Terra, apenas nos últimos quinhentos começou-se a conhecer algo sobre a estrela que dá vida ao planeta. E só muitíssimo recentemente — depois da Segunda Guerra Mundial — os astrônomos passaram a ter uma idéia mais precisa do que acontece por trás de sua face de fogo. Mas, desde então, as descobertas não cessaram de se acumular rapidamente, à medida que os instrumentos de observação foram-se tornando cada vez mais sofisticados. Os projetos modernos são espetaculares, a começar pela esperta nave-robô norte-americana Starprobe (Investigador de Estrela) que em missão suicida mergulhará diretamente sobre as labaredas solares, transmitindo informações até ser consumida.

Essa nave deveria voar já este ano, mas seu lançamento foi adiado por causa dos cortes impostos ao programa espacial dos Estados Unidos. Assim, enquanto não sai a primeira viagem ao Sol, outras expedições ganham impulso. Uma delas é o vôo da nave européia Ulysses, que deverá estar pronta para partir em 1990. Menos audaciosa que a Starprobe, ela pretende apenas ficar em órbita solar. Mas a rota é importante: a nave passará sobre o que se poderia chamar de lado oculto do Sol — os seus pólos, sempre em posição impossível de ser observados da Terra. Depois de Ulysses, subirá a Soho, também européia, cujo destino será estacionar a uma distância fixa e segura do Sol, o suficiente para observar e analisar o seu comportamento.

É uma missão de respeito: afinal, qualquer irregularidade no funcionamento dessa imensa usina energética pode ter conseqüências imprevisíveis sobre toda a vida na Terra. É por prover a vida que o Sol é para nós o mais importante astro do céu, embora seja apenas uma das dezenas de bilhões de estrelas que giram conjuntamente nesse grande redemoinho que é a Via Láctea. A galáxia em que o Sol nasceu e vive é um disco de estrelas que levará inimagináveis 200 bilhões de anos — bem mais de dez vezes a idade do Universo — para dar uma volta completa sobre si mesmo. A galáxia contém astros maiores e menores: o Sol fica numa posição de classe média — tanto em tamanho como em brilho ou peso. Mas está muito próximo: sua luz, que é a coisa mais rápida do Universo, leva apenas oito minutos para chegar à Terra. Ao passo que a estrela mais próxima, Alfa da constelação de Centauro, está a quatro anos de viagem, mesmo à velocidade da luz. O centro da galáxia, em igual pique, fica a 30 mil anos de distância.

A nave espacial Soho, portanto, será uma repórter em posição privilegiada. Ficará atenta especialmente às ondas gigantes que agitam a superfície solar. É um meio indireto mas engenhoso de saber o que está se passando nas regiões interiores do Sol. Ao contrário dos planetas ou da Lua, as estrelas não são corpos sólidos. Por isso, mesmo que a nave Starprobe levasse um imaginário astronauta invulnerável ao fogo, este jamais poderia pisar na superfície do Sol — a exemplo do que os americanos fizeram na Lua em  1969.

A matéria do Sol é o plasma, uma espécie de gás. Mas o plasma não é neutro, como os gases que se conhecem: suas partículas são fragmentos de átomos ou moléculas e possuem temperaturas altíssimas. No interior do Sol, o plasma atinge quase 20 milhões de graus, um valor que na superfície brilhante cai para 5 mil graus. Logo acima da superfície, porém, o plasma se torna muito rarefeito  e sofre a ação de poderosas forças magnéticas. Sua temperatura, então, é mais alta que na superfície, brilhante, alcançando até 2 milhões de graus.

A nave européia Soho também fará medições constantes do chamado vento solar, uma leve corrente de plasma que está constantemente se desgarrando do Sol para espalhar-se pelo espaço. O efeito mais célebre do vento solar são as caudas dos cometas, criadas quando estes se aquecem nas proximidades da estrela. A brisa eletrificada, nesse caso, desagrega o núcleo do cometa e empurra para longe do Sol uma grande quantidade de pó e gás liberados dessa forma.

Todos esses fenômenos, embora fascinantes, são meros espirros do gigante, cuja força real arde profundamente em seu núcleo. É verdade que a superfície, é às vezes sacudida por explosões violentas, gerando erupções de plasma que se estendem por até 200 mil quilômetros no espaço — trinta vezes o diâmetro da Terra. Mas essas línguas de fogo são relativamente tênues, apesar de compridas. No corpo do Sol, em vez disso, caberiam com alguma folga 1 milhão de planetas como o nosso. Esse volume tem um raio de 1,5 milhão de quilômetros — 250 vezes maior que o raio da Terra.

Já o núcleo solar é uma esfera de raio dez vezes menor que o da própria estrela, mas com uma densidade extremamente alta. Ele suporta todo o peso das camadas externas. Assim, é mais compacto que o ferro. Mas continua sendo um gás porque compensa o esmagamento com sua elevada temperatura: o calor, procurando expandir-se, contém a gravidade da massa acima do núcleo. Esse é o fantástico jogo de forças que mantém as estrelas por assim dizer de pé e em funcionamento, numa luta perene entre o seu próprio peso e o calor central.

Em 1926, o astrônomo inglês Arthur Eddington fez uma ousada sugestão sobre a origem desse calor: ele só podia ser gerado por um reator nuclear. A comunidade científica se escandalizou porque então se conhecia muito pouco sobre as reações atômicas. Algumas décadas mais tarde, porém, viu-se que a teoria estava certa. O plasma no núcleo do Sol sofre transformações semelhantes às que ocorrem na explosão de uma bomba de hidrogênio e, também como neste caso, passa a emitir radiação principalmente sob a forma de luz e calor.

Essa radiação não é visível, pois ainda tem de atravessar as camadas externas, um percurso longe de ser curto. Estima-se que um raio de luz leve milhões de anos chocando-se com as partículas de plasma até emergir na superfície brilhante. A maior parte do trajeto, no caso do calor, é feita em forma de radiação, como ocorre com a luz. Mas um pouco abaixo da superfície o calor faz com que o plasma entre em ebulição, à maneira da água levada ao fogo. Como os turbilhões de matéria nessa região envolvem gás eletrificado, acabam criando potentes campos de força magnética. Esta, por sua vez, gera as oscilações e erupções extraordinárias que os astrônomos podem observar.

Na Antiguidade, os homens se assustavam terrivelmente quando o Sol se apagava. Sem saber que estavam apenas diante de um eclipse — um dos raros momentos em que a sombra da Lua se projeta sobre a Terra —, imaginavam que o seu deus estava em apuros. Os sábios egípcios do tempo dos faraós, por exemplo, ensinavam que nesses momentos o Sol estava sendo devorado por uma porca gigante, um espírito maligno da mitologia da época. Que os antigos pudessem pensar assim não surpreende. O curioso é que as crendices do passado persistem em algum lugar do presente.

Assim, em 1983, quando ocorreu o mais longo eclipse desta década, uma lenda semelhante à dos egípcios voltou a assombrar os indonésios, que tiveram o privilégio de ver a ocultação do Sol em pleno dia. Durante cinco minutos, a Lua, muito mais próxima da Terra, passou à frente do astro-rei. Sua esfera de fogo, então, transformou-se em um lindo disco negro, visível apenas porque à sua volta permaneceu um fino halo de chamas — a corona. De acordo com os indonésios, o Sol tinha acabado de ser devorado pelo monstro mítico Kala Rau.

Muito do interesse da ciência pelos eclipses vem do fato de que eles expõem com mais nitidez o véu flamejante da corona. Os cientistas esperam aprender mais sobre os plasmas para um dia fabricar uma imitação do reator central do Sol. A razão é que, embora na corona não ocorram reações nucleares, ela é um bom exemplo natural de como o plasma se comporta sob a ação de forças magnéticas. Pois é exatamente por meio de grandes ímãs que os físicos tentam espremer os plasmas na Terra: desse modo, podem simular a enorme pressão gravitacional que age no interior do Sol.

"De certa forma estamos usando o Sol como um laboratório", gaba-se o astrônomo norte-americano Ray Smartt, membro de uma equipe de trinta pesquisadores especialmente encarregados de elucidar os segredos da corona. Ele espelha o empenho existente nos tempos atuais em aprender mais sobre o Sol. Num misto de fascinação e espírito prático, o objetivo desses pesquisadores é abrir caminho para o futuro, quando o espaço se tornar cada vez mais importante para o progresso aqui na Terra.

A ciência toma Sol.
Cinco séculos antes de Cristo, o grego Anaxágoras disse que o Sol era uma esfera de ferro incandescente. Ninguém lhe deu ouvidos. O homem só começou a entender o Sol mais de 2 mil anos depois. Em 1610, o italiano Galileu Galilei anunciou ter visto ao telescópio estranhas manchas negras na superfície solar. Hoje se sabe que as manchas são áreas da superfície do Sol onde a temperatura é menor por ação das forças magnéticas ali concentradas. Mas já no século XVII a descoberta de Galileu bastou para acabar com o mito de que o Sol era perfeito e imutável.

Em 1834, o matemático alemão Carl Gauss (1777—1835) teve a brilhante idéia de usar uma bússola para saber se o Sol tinha força magnética como a Terra. Nos anos seguintes, de fato, verificou-se que não só ela existia ali como se tornava mais forte quando o Sol ficava mais carregado com as manchas que tanto intrigaram Galileu. Outra inovação foi trazida pelo astrônomo inglês John Herschel (1792—1871). Em 1839, usando apenas um prato com água, ele mediu pela primeira vez a potência térmica do Sol. Estimou que a temperatura de uma lâmina de água de cerca de 2 centímetros de espessura subia, exposta ao Sol, 1 grau centígrado por minuto — uma indicação bastante boa de quantidade de energia emitida pelo Sol.

Mas o grande salto da ciência solar já tinha sido dado em 1814 com a invenção do espectroscópio, aparelho capaz de decompor a luz como um prisma. Cada substância, ao ser queimada, tem uma espécie de assinatura luminosa. O arco-íris produzido pelo espectroscópio decifra essa assinatura na forma de uma determinada combinação de cores. Assim começou a ser conhecida a composição química do Sol. Aprendeu-se que ele contém os mesmos elementos existentes na Terra, mas em proporções às vezes muito diferentes. Por exemplo, o hélio é 20 por cento do Sol; na Terra, é menos de 1 por cento.

O espectroscópio, ao permitir que se analisasse o interior dos átomos, ajudou a abrir caminho para a grande revolução da Física neste século. Na década de 30 ficou claro que a energia do Sol era fruto de colossais reações atômicas. Foi a primeira vez que se desconfiou de que nem o Sol nem qualquer outra estrela são eternos. E o ciclo de vida do astro-rei, determinado pela quantidade de combustível nuclear disponível, pôde, enfim, ser calculado.

Morre uma estrela: é o fim do mundo
As estrelas empregam um sistema curioso para gerar energia: constroem átomos pesados a partir de átomos mais leves. A luz e o calor que emitem é um simples resíduo do esforço empregado na construção. Todos os elementos conhecidos, tais como o ferro, o oxigênio, o ouro ou o urânio, nasceram dessa forma: assados nas fornalhas estelares. Até o aparecimento das estrelas, há cerca de 15 bilhões de anos, praticamente toda a matéria existente estava na forma de hidrogênio — o avô de todos os outros átomos.

Cerca de 1 milhão de anos depois do seu nascimento, algo de novo aconteceu. As massas de hidrogênio, agrupadas pela atração gravitacional, começaram a criar estrelas e galáxias. Os átomos que ficaram presos nos núcleos estelares, sob forte pressão, fundiram-se sempre aos pares. E não se tratou de uma simples soma: os novos “tijolos” de matéria, contendo dois átomos soldados entre si, formavam um novo elemento, o hélio. O Sol provavelmente nasceu dos restos de outra estrela, que por sua vez também pode ter nascido assim.

Trata-se portanto de um astro de segunda ou terceira geração. Essa hipótese decorre de um fato simples: o Sol contém átomos muito pesados, como o urânio, que se constituem apenas quando uma estrela morre. Nesse caso o “reator” estelar, tendo usado todos os átomos leves que possuía, já não gera o calor e a luz que serviam para conter sua própria gravidade. Assim, o velho astro desmorona sobre si mesmo. A pressão interna momentaneamente se eleva a níveis fantásticos e mesmo os átomos mais pesados podem se formar. Mas esse é também o seu canto do cisne, pois a produção de energia é tão alta que destroça a estrela numa explosão. Os seus gases, lançados ao espaço, serão as sementes de uma nova estrela.

O mesmo destino aguarda o Sol. Mas sua morte não será tão espetacular porque ele contém relativamente pouca matéria. Dentro de 5 bilhões de anos, ao esgotar-se o seu combustível, haverá um excesso fatal de produção energética. A explosão resultante será lenta. O Sol apenas inchará como um balão, engolindo gradualmente os planetas mais próximos. O primeiro a ser devorado será Mercúrio, seu vizinho. Depois será a vez de Vênus e em seguida esta Terra. De amarelo, como hoje, o Sol passará para laranja, depois para vermelho. Sua superfície brilhante, enormemente expandida, terá uma temperatura mais baixa, mas emissão total de calor será maior.

Portanto, antes de desaparecer dentro do já então rarefeito gigante vermelho, a Terra será assada em fogo brando. Em questão de duzentos anos, por exemplo, a temperatura média do planeta vai no mínimo dobrar — e não há forma concebível de vida capaz de resistir a tamanha subversão. As calotas polares, derretendo, encherão os oceanos. Boa parte dos continentes ficará submersa e não haverá refúgio possível contra o calor infernal que se espalhará por toda a parte.

“Uma vasta Amazônia, quente e úmida, se estenderá pelo planeta”, imagina o físico canadense Hubert Reeves. “Mais tarde, intermináveis incêndios consumirão tudo o que há de orgânico.” Reeves imagina que seja possível dobrar o tempo de vida útil do Sol, despejando nele um arsenal de bombas de hidrogênio, de modo a puxar combustível novo das camadas externas para o centro, onde se dão as reações nucleares. Mas talvez nunca venha a existir tecnologia suficiente para fazer essas bombas explodiram, não na superfície, mas dentro do astro, como seria necessário. Enfim, depois de alguns milhares de anos, a própria Terra se fundirá. Baforadas tórridas encerrarão o espetáculo, consumindo e espalhando pelo espaço a matéria do Sol e de todos os planetas, mesmo os mais distantes, como Netuno e Plutão.

No centro do sistema solar, então, restará apenas o antigo núcleo do Sol — uma “anã branca”, no dizer dos astrônomos. Quase cem vezes menor do que a estrela Sol que lhe deu origem, desprovida de combustível, ela queimará os seus restos, lentamente, como o carvão que sobra de uma fogueira. Ao cabo de mais meio bilhão de anos, a anã se tornará negra e gelada e não voltará a brilhar. Em vez disso, a matéria que a rodeava no passado terá formado uma nova estrela, em outro lugar.
Revista Superinteressante

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