sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

A globalização econômica


Valérie de Campos Mello

Professora e Pesquisadora da Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro.

O outro processo de transformação que vem afetando de maneira fundamental as bases das relações internacionais é a globalização econômica acentuada neste final de século. A globalização deve ser entendida como um processo, um padrão histórico de mudança estrutural, mais do que uma transformação política e social já plenamente realizada. Ela é um fenômeno ao mesmo tempo amplo e limitado: amplo, porque ela cobre transformações políticas, econômicas, e culturais ; limitado, porque não se trata de um processo completo e terminado, e ele não afeta a todos da mesma maneira. O processo de globalização é caracterizado pela intensa mudança estrutural da economia internacional, com o peso crescente de transações e conexões organizacionais que ultrapassam a fronteira dos Estados. Os principais componentes dessa mudança são:
i) a globalização da produção e do comércio: a globalização da produção pode ser entendida como a produção de bens e serviços em mais de um país e segundo uma estratégia global de vendas voltada para o mercado mundial . O processo de reestruturação da produção começou nos anos 70, no contexto de crescente competição internacional e inovações tecnológicas, e ele foi acelerado nos anos 80 com a queda nas taxas de crescimento e a recessão que muitos países conheceram. Hoje, nota-se uma mundialização da atividade empresarial, tanto na área industrial como na área de serviços, com o papel crescente das grandes corporações transnacionais (CTNs). O número de CTNS cresceu de 3.500 em 1960 para 40.000 em 1995. 
Houve, também, uma mudança no caráter do comércio. Mais do que uma troca de produtos entre sistemas produtivos domésticos, o comércio hoje é cada vez mais um fluxo de produtos entre redes de produção que são organizadas globalmente e não nacionalmente. As mercadorias são criadas através da integração de processos de produção levados a cabo em uma multiplicidade de territórios nacionais. A inclusão ou exclusão de um território nestas redes de produção depende da decisão de agentes privados. Os Estados podem tentar tornar seus territórios mais atraentes, mas eles não podem ditar a estrutura destas redes de produção global. Hoje, uma grande parcela do comércio internacional, entre 25 e 40 %, é na verdade comércio intrafirma. Quando um bem ou serviço vai de uma a outra filial de CTN, a operação é contabilizada como comércio internacional. Na verdade, trata-se do movimento de uma economia global, na qual existem bens e serviços globais, vendidos no mundo inteiro.
ii) A globalização das finanças: os mercados financeiros globais têm desempenhado um papel importante na construção da estrutura e da dinâmica da emergente ordem político-econômica. Alguns autores acreditam que é na área financeira que a globalização tem sido mais intensa, e que esta é a grande novidade do capitalismo no final do século XX. Desenvolvimentos tecnológicos nas comunicações também ajudaram a globalizar as finanças: hoje, existem moedas globais, bancos globais, assim como um sistema de crédito global. As transações de câmbio cresceram de uma média de US$ 600 bilhões por dia no final dos anos 80 a US$ 1 trilhão por dia em 1993. O volume de transações financeiras vale 40 vezes mais do que o volume de comércio de mercadorias. As finanças se tornaram separadas da produção, e são hoje um poder independente, o que significa a preponderância de interesses financeiros imediatos sobre considerações de desenvolvimento a longo-prazo.
Os mercados financeiros estão adquirindo uma crescente autonomia em relação aos Estados: o capital move-se de um país ao outro em busca do retorno máximo, afetando a capacidade de os Estados administrarem suas economias. O poder de controle dos bancos centrais sobre o valor de suas moedas é reduzido, o que limita a eficácia das políticas monetárias e fiscais dos governos. Com os capitais especulativos, há menos controle sobre taxas de câmbio, e uma maior volatilidade cambial. Fred Block fala da "ditadura dos mercados financeiros internacionais": todo Estado que iniciar uma política julgada inapropriada será punido pela desvalorização de sua moeda e pelo acesso dificultado ao capital. Os recentes acontecimentos na bolsa de valores e seu impacto imediato no Brasil são uma boa demonstração desse fenômeno. Hoje, a globalização financeira tende a promover uma crescente "internacionalização" dos Estados. Para O'Brien, é o "fim da geografia": os movimentos de capital hoje têm uma autonomia geográfica total e não obedecem a critérios nacionais.
iii) Uma mudança no modelo de acumulação e de produção: por fim, o modelo de acumulação e produção evoluiu com a passagem ao "pós-fordismo". O modelo fordista de produção era um sistema de acumulação baseado na produção e no consumo de massa. Ele foi criado nos anos 30 nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo após a Segunda Guerra Mundial. Ele se caracterizava por uma aliança entre o Taylorismo como modo de organizar o trabalho, com uma nítida separação entre os aspectos manuais e intelectuais do trabalho, e, de outro lado, relações contratuais rígidas entre capital e trabalho – contratos de trabalho de duração indeterminada com diversas vantagens, convenções coletivas, legislação de proteção social, e outros mecanismos assegurados pelo Estado de bem-estar social. O sistema fordista foi a base do crescimento do após-guerra, garantindo ganhos de produtividade e aumento nos níveis de vida, o que por sua vez assegurava um alto patamar de consumo e estimulava o crescimento.
Este modelo foi chamado de capitalismo organizado, ou de liberalismo embebido (embedded liberalism): um sistema econômico com relativa liberdade para o capital global estava embebido em um corpo social, de instituições, normas, regulamentações, que comprometiam os Estados industrializados a insular e proteger os seus cidadãos, ao menos parcialmente, do custo de tal sistema. Como vimos, tal ideologia deve muito ao contexto histórico em que foi elaborada: a Segunda Guerra Mundial e seus efeitos devastadores levaram os governos a pensar que uma melhor proteção social de seus cidadãos seria um meio de evitar os traumas políticos das décadas anteriores, assim como de afastar a tentação comunista.
No entanto, tal modelo começa a demonstrar sinais de fraqueza no final dos anos 60, com um declínio no crescimento da produtividade e uma crise na organização do trabalho. Aparece uma contradição entre a globalização da produção e dos mercados e o caráter nacional da regulação do trabalho. Nos anos 80, os sinais de crise estavam presentes: taxas mais lentas de crescimento da produção, diminuição das taxas de produtividade e crescimento do desemprego. O modelo fordista começou a ser considerado excessivamente rígido. Com o movimento em direção a uma economia mais baseada na informação e na tecnologia de ponta, outros modos de organização do trabalho surgem. O Fordismo tende a ser substituído por modelos pós-fordistas, mais "flexíveis", ancorados em informação, serviços e alta tecnologia, com os exemplos notáveis dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.
Hoje, estamos nos movendo do que autores chamam de capitalismo organizado, no qual o Estado tinha um grande papel regulador, para um regime de acumulação flexível, no qual as políticas de emprego são flexíveis e toda a ênfase é colocada na competitividade. Este atual modelo tem uma estrutura de produção que segue um modelo centro-periferia: um centro relativamente pequeno de empregados permanentes que são encarregados de tarefas como pesquisa, finanças e organização tecnológica, e uma periferia que compõe o processo de produção e se ajusta às decisões do centro, com um uso constante do trabalho temporário. Tal evolução questiona e ameaça as conquistas dos trabalhadores e as leis sociais elaboradas nos tempos do Estado de bem-estar social, colocando sérios desafios à estabilidade social.
Artigo Completo através do título
Globalização, regionalismo e ordem internacional
Revista Brasileira de Política Internacional