quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Pangeia, o retorno. De volta ao futuro???

Pangéia, o retorno
A ciência já sabe: daqui a 250 milhões de anos, a cara do nosso planeta será bem parecida com uma fotografia do passado distante. Bem-vindo ao próximo supercontinente
CAROLINE WILLIAMS E TED NIELD


Você embarcou em sua máquina do tempo. Para o futuro, 250 milhões de anos adiante. A Terra está viva e bem. Os humanos há muito pereceram, mas o planeta continua a ser o lar de formas de vida desconcertantes. Com exceção de alguns poucos fósseis misteriosos, não há nenhuma evidência de que um dia existimos. Para alguém que viveu no século 21, como eu e você, a Terra é quase irreconhecível. Os continentes estão unidos em uma única e gigantesca massa cercada por um oceano global. A maior parte do solo seco é um deserto hostil, enquanto a costa é atacada por tempestades ferozes. Os oceanos são turbulentos na superfície, estagnados nas profundezas e constantemente famintos por oxigênio e nutrientes. Doenças, guerras e colisões de asteróides levaram humanos e muitas outras espécies do passado à extinção. Pronto, voltemos ao presente.

Esse supercontinente do futuro não é o primeiro e não será o último. Geólogos suspeitam que o movimento das massas de terra em nosso planeta é cíclico e que a cada 500 ou 700 milhões de anos elas se juntam. Esse ciclo é três vezes mais longo do que o tempo gasto pelo nosso Sistema Solar para orbitar o centro da galáxia. Isto posto, resta saber o que rege esse fenômeno, e como a vida será na próxima vez que os continentes se encontrarem.

Os continentes se movem graças à circulação do manto terrestre sob as sete grandes placas tectônicas. Quando elas se encontram, uma placa é forçada a ficar sob a outra, em um processo chamado subducção. Ele separa a crosta do outro lado da placa, permitindo que novas camadas de magma cheguem à superfície para preencher a lacuna. Esse processo faz com que a crosta oceânica seja constantemente criada e destruída. Como os continentes são feitos de rocha menos densa do que aquela mais pesada e mais fina da crosta oceânica, que forma o chão marinho, eles passam acima do manto e escapam da subducção.

Como resultado de tudo isso, os continentes mantêm sua forma por centenas de milhões de anos enquanto deslizam vagarosamente pelo planeta. Entretanto, as massas de terra acima da água do mar colidem sempre. E, às vezes, juntam-se para formar um supercontinente.

O mais recente e célebre deles, Pangéia, foi formado há 300 milhões de anos e sucumbiu 100 milhões de anos depois, quando os dinossauros surgiram. Cerca de 1,1 bilhão de anos atrás, outro supercontinente, Rodínia, formou-se e fragmentou-se 250 milhões de anos depois. Com toda certeza, eles não foram os únicos - a lista inclui Pannotia, Columbia (ou Nuna), Kenorland e Ur (veja "Passado e futuro dos supercontinentes"). O problema é que ninguém sabe ao certo quantos deles existiram porque a formação de um supercontinente tende a destruir evidências de seu antecessor. Se há um ponto sobre o qual todos concordam é que existiram dois deles contendo toda, ou quase isso, a terra do planeta: Pangéia e Rodínia.

MAPAS-MÚNDI
Há 250 milhões de anos, havia Pangéia, um supercontinente que cobria o globo de norte a sul. Daqui a outros 250 milhões de anos, os continentes se juntarão mais uma vez. Eis três hipóteses a respeito do futuro de nosso planeta.


No meio do caminho
Neste exato momento, vivemos a metade de um ciclo. O Oceano Pacífico está gradualmente se fechando, a crosta oceânica afunda nas zonas de subducção do Pacífico Norte, um sulco do Atlântico Central está alimentando novo solo marinho e as Américas separam-se cada vez mais da Europa e da África. Por falar em África, o continente está se movendo para o norte, em direção ao sul da Europa. A Oceania também caminha para o norte, rumo ao Sudeste Asiático. Os continentes movem-se cerca de 15 milímetros por ano, velocidade similar ao crescimento das unhas de um ser humano.

Adiante o relógio em algum ponto entre 50 e 100 milhões de anos e será fácil ter uma idéia básica de como tudo será. Se olharmos ainda mais para o futuro, descobriremos que as mudanças não se resumem ao movimento contínuo dos continentes. Christopher Scotese, da Universidade do Texas, em Arlington, compara o problema a dirigir em uma estrada. "Você pode ter um palpite de onde estará em 5 ou 10 minutos, mas sempre há acidentes. As pessoas mudam de faixas ou a estrada pode ter um desvio inesperado. Se algo assim acontecer, você terá de fazer uma escolha." Há duas maneiras de os continentes como os conhecemos se juntarem. Se o Oceano Atlântico continuar a se expandir, as Américas em algum momento irão trombar com a Ásia. Por outro lado, uma zona de subducção pode se abrir no Atlântico e trazer o solo marinho de volta, forçando a Europa e a América a ficarem juntas novamente. Isso, essencialmente, recriaria a Pangéia.

Em 1992, o geólogo Chris Hatnady, da Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul), aceitou o desafio de projetar o próximo supercontinente. Segundo ele, enquanto o Atlântico continua a aumentar, "as Américas seguem em sentido horário, ao redor de um eixo a noroeste da Sibéria, parecendo destinadas a juntar-se com a margem leste do futuro supercontinente", o qual é chamado de Amásia pelo geólogo Paul Hoffman, da Universidade de Harvard (EUA). Nessa visão do futuro, a Oceania continuará seu caminho para o norte, e a África ficará mais ou menos no mesmo lugar. Enquanto isso, a Antártica permanecerá no Pólo Sul. "Ela não está ligada a nenhuma zona de subducção. Portanto, não existe razão para qualquer movimento", afirma Hoffman.

Roy Livermore, da Universidade de Cambridge (Inglaterra), chegou a conclusão parecida. No fim dos anos 1990, ele criou sua própria versão de Amásia, um futuro supercontinente que chamou de Novopangéia. "Tomei a liberdade de abrir uma nova fenda entre o Oceano Índico e o Atlântico Norte", diz. "Sabemos que a Grande Fenda [complexo de falhas tectônicas na costa da África] é ativo, então o projetamos abrindo um pequeno oceano no futuro. A África oriental e a ilha de Madagáscar movem-se através do Oceano Índico para colidir com a Ásia. A Oceania já teria colidido com o sudeste da Ásia." Além disso, uma cadeia de montanhas terá surgido no mar que seguirá junto à zona de subducção ao sul da Índia.

No futuro de Livermore, todos os continentes atuais estão unidos. "Eu não acredito que a Antártica permanecerá no Pólo", diz. Para tanto, ele supõe que uma nova zona de subducção será aberta para levar tudo embora. "A beleza disso é que ninguém nunca poderá provar que estou errado", afirma o geólogo.

PASSADO E FUTURO DOS SUPERCONTINENTES
Os geólogos já sabem que pelo menos dois deles já existiram no passado, Pangéia e Rodínia. Evidências concretas da existência de outros supercontinentes são controversas, já que a nascimento de um praticamente elimina os sinais de seus antecessores. Eis algumas das suspeitas dos cientistas.
UR ; cerca de 3 bilhões de anos atrás
Kenorland; 2,5 bilhões de anos atrás
COLUMBIA (ou NUNA); cerca de 1,9 bilhões de anos atrás
RONDÍNIA; cerca de 900 milhões de anos atrás
PANNOTIA ; 600 milhões de anos atrás
PANGÉIA ; 300 milhões de anos atrás
HOJE
PRÓXIMO SUPERCONTINENTE; 250 milhões de anos no futuro

Isso pode ser verdade, mas outros pesquisadores discordam. Scotese gastou muito de sua carreira reconstruindo o passado da Terra e agora aplica esse conhecimento para projetar os continentes no futuro. Ele não o vê como Hoffman e Livermore. Como eles, Scotese prevê que nos próximos 50 milhões de anos a África continuará indo para o norte, fechando o Mediterrâneo e impulsionando uma cadeia montanhosa do tamanho do Himalaia ao sul da Europa. A Austrália irá girar e colidir com Bornéu e o sul da China. Mas, segundo ele, tudo irá mudar 200 milhões de anos mais tarde. A subducção começa do lado ocidental do Atlântico. A abertura pára e o Atlântico começa a encolher, unindo novamente a maior parte das grandes áreas de terra, enquanto a América do Norte tromba com o continente Euro-Africano. Originalmente, Scotese chamou o supercontinente resultante de Pangéia Última, mas recentemente o renomeou de Pangéia Próxima. "O nome Última me incomodava porque dá a idéia de ser o supercontinente derradeiro", diz Scotese. "Esse processo irá continuar por outros bilhões de anos."

O geólogo diz que uma nova zona de subducção no Atlântico poderia ser aberta se uma pequena zona já existente, como uma parte da Fossa de Porto Rico (Caribe), se espalhar até a costa americana como resultado da mudança das tensões no planeta. Sob as condições certas, ele diz, a crosta poderia começar a quebrar ao longo de sua linha, sinalizando o começo do fim para a Dorsal Meso-Atlântica. Hoje ela fica no meio do caminho entre a Europa e as Américas, mas, "se estivéssemos para começar a subducção no Atlântico ocidental ou no Atlântico oriental, a Dorsal seria forçada a se mover em direção à zona de subducção", diz. "Ela seria reduzida e teríamos um oceano com uma zona de subducção e sem a fenda. Isso significa que o Atlântico seria fechado rapidamente."

No momento, não há nada que mostre qual dos modelos está correto. Mas todos concordam que a vida em qualquer um deles será bem difícil. "Supercontinentes criam extremos", diz Paul Valdes, climatologista da Universidade de Bristol (Inglaterra). Podemos dizer como era o clima da Pangéia graças a evidências geológicas como as posições dos depósitos sensíveis ao clima, entre eles os de carvão, originados em condições quentes e úmidas. Esse tipo de evidência pode ser usado para construir modelos de computador capazes de prever o clima do futuro. Os modelos resultantes sugerem que supercontinentes estão propensos a mudanças violentas nas estações do ano.

"Em Pangéia, as latitudes tropicais poderiam ser bem quentes, talvez acima de 44°C. Latitudes medianas teriam verões muito quentes e invernos muito frios, com temperaturas chegando a 20°C ou 30°C negativos, com muita neve", diz Valdes. "Tudo derreteria nos verões seguintes, causando grandes inundações." Apesar disso, vastas áreas no interior ficariam secas, porque as nuvens de chuva não teriam como avançar para terras mais internas. Em climas tão extremos, apenas uma pequena porção do supercontinente seria capaz de sustentar formas de vida. Em Pangéia, segundo Valdes, as terras com melhores condições ficavam em uma zona estreita logo depois dos trópicos. A vastidão do supercontinente futuro também provocará climas extremos. Monções se formarão por causa das diferenças de temperatura entre terra e oceano. "Se você tem uma grande massa de terra, ela aquece e estimula uma megamonção", diz Valdes.



Se abrigar vulcões em atividade, o novo supercontinente será castigado por furacões extremos
Devastação no ar
Pior: se o supercontinente abrigar vulcões em atividade, teremos uma atmosfera rica em dióxido de carbono e um planeta mais aquecido. Águas superficiais mais quentes poderiam formar furacões extremos. Com milhares de quilômetros de diâmetro e cerca de 50% mais fortes do que os mais destruidores furacões de hoje em dia, eles iriam devastar a paisagem com ventos de mais de 400 km/h.

A vida também será difícil nos oceanos. O sistema global de condução das correntes, que atualmente mantém a oxigenação e o estoque de nutrientes, dependerá do tamanho e do formato da bacia oceânica, além da posição dos continentes. Mova-os e esses condutores poderão desaparecer. O resultado será desastroso: as águas se tornarão estratificadas e com pouco oxigênio, e muito pouco da vida marinha será capaz de sobreviver.

As costas cheias de recifes perto do equador ainda serão férteis, mas a vida não será fácil mesmo ali. Quando os continentes se juntarem, haverá uma redução drástica da área de mares rasos. Muito provavelmente, essa diminuição levará à extinção em massa de espécies colocadas no mesmo ambiente e forçadas a competir. Algo parecido também acontecerá em terra. A formação de Pangéia é freqüentemente responsabilizada por uma das maiores mortandades de todos os tempos, a extinção Permiana, em parte devido à redução de hábitat disponível.

Entretanto, a vida é pródiga ao tirar o melhor de novas situações. Há 290 milhões de anos, quando a Pangéia se formou e as calotas polares derreteram, surgiram alguns dos ecossistemas mais misteriosos até hoje. Florestas densas de árvores Glossopteris (do grego "glossa", "língua", porque as suas folhas tinham esse formato) cresceram a mais de 25 metros de altura na costa sul do Mar de Tétis (surgido com a separação de Pangéia) e avançaram para o interior a 20 graus do Pólo Sul.

Apesar de serem sustentadas por um verão de luz fraca, essas árvores eram capazes de sobreviver por meses na escuridão do inverno. Toda a vegetação próxima à costa era fustigada por monções poderosas e chuvas barulhentas vindas do Mar de Tétis, com nuvens escuras obstruindo o já enfraquecido sol. Quando o inverno se aproximava, as folhas da Glossopteris caíam graças à falta de oxigênio. Não é surpresa que análises de anéis de crescimento fossilizados mostraram que a Glossopteris crescia freneticamente enquanto podia.

De qualquer maneira, os humanos não estarão aqui para ver esse futuro. O próximo supercontinente ainda não passa de um punhado de especulações, mas já tem lições valiosas para nos passar. Até podemos ficar cada vez mais espertos, mas a Terra continuará sua jornada pelo Cosmos. Com ou sem a nossa presença por aqui.
Revista Galileu

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A nova divisão internacional do mundo


A nova divisão internacional do mundo

Marcio Pochmann

Até a metade do século XVIII, o espaço geográfico que compreende os países asiáticos respondia pela maior parte da produção mundial, tendo em vista a combinação de sua grande dimensão populacional e territorial. Com o surgimento da primeira Revolução Industrial (motor a vapor, ferrovias e tear mecânico), a partir de 1750, o centro dinâmico do mundo deslocou-se para o Ocidente, especialmente para a Inglaterra, que rapidamente se transformou na grande oficina de manufatura do mundo por conta de sua original industrialização.

A divisão internacional do trabalho, que resultou do movimento de deslocamento da estrutura da produção e exportação na manufatura inglesa em relação aos produtos primários exportados pelo resto do mundo, sofreu modificações importantes somente com o avanço da segunda Revolução Industrial (eletricidade, motor a combustão e automóvel) no último quartel do século XIX. Naquela época, a onda de industrialização retardatária em curso nos Estados Unidos e Alemanha, por exemplo, protagonizou as principais disputas em torno da sucessão da velha liderança inglesa. A sequência de duas grandes guerras mundiais (1914 e 1939) apontou não apenas para o fortalecimento estadunidense como permitiu consolidar o novo deslocamento do centro dinâmico mundial da Europa (Inglaterra) para a América (EUA).

Com a Guerra Fria (1947 – 1991), prevaleceu a polarização mundial entre o bloco de países liderados pelos Estados Unidos e pela antiga União Soviética. Na década de 1970, com a crise capitalista impulsionada pela elevação dos preços de matéria-prima e petróleo, a economia dos EUA apresentou sinais de enfraquecimento, simultaneamente ao fortalecimento da produção e exportação japonesa e alemã. Especialmente com a adoção das políticas neoliberais pelos EUA, o mundo novamente voltou a se curvar ao poder norte-americano, sobretudo nos anos 1990, com o desmoronamento soviético que favoreceu o exercício unipolar da dinâmica econômica mundial.


A manifestação da grave crise global desde 2008 tornou mais claro o conjunto de sinais da decadência relativa dos Estados Unidos. A ineficácia das políticas neoliberais e o poder concentrado e centralizado das grandes corporações transnacionais adonaram-se do Estado em grande parte dos países desenvolvidos, sendo responsável pela adoção de políticas caracterizadas como “socialismo dos ricos”. Enquanto os trabalhadores pagam com a perda de seus empregos e a precarização das ocupações, os grandes grupos econômicos se ajustam com grandes somas do orçamento público, este, incapaz de recuperar a dinâmica produtiva, priorizando a financeirização da riqueza.

Simultaneamente, percebe-se o reaparecimento da multicentralidade geográfica mundial com um novo deslocamento do centro dinâmico da América (EUA) para a Ásia (China). Ao mesmo tempo, países de grande dimensão geográfica e populacional voltaram a assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso da China, Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, que já respondem atualmente pela metade da expansão econômica do planeta. São cada vez mais chamados de “países baleia”, que procuram exercer efeitos sistêmicos no entorno de suas regiões, fazendo avançar a integração supra-regional, como no caso do Mercosul e Asean, que se expandem com maior autonomia no âmbito das relações Sul-Sul. Não sem motivos, demandam reformulações na ordem econômica global (reestruturação do padrão monetário, exercício do comércio justo, novas alternativas tecnológicas, democratização do poder e sustentabilidade ambiental).

Uma nova divisão internacional do trabalho se vislumbra associada ao desenvolvimento das forças produtivas assentadas na agropecuária, mineração, indústria e construção civil nas economias “baleia”. Também ganham importância as políticas de avanço do trabalho imaterial conectado com a forte expansão do setor de serviços. Essa inédita fase do desenvolvimento mundial tende a depender diretamente do vigor dos novos países que emergiram cada vez mais distantes dos pilares anteriormente hegemônicos do pensamento único (equilíbrio de poder nos Estados Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dólar e assentado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados), atualmente desacreditados.

Nestes termos, percebe-se que a reorganização mundial desde a crise global em 2008 vem se apoiando numa nova estrutura de funcionamento que exige coordenação e liderança mais ampliada. Os “países baleia” podem contribuir muito para isso, tendo em vista que o tripé da nova expansão econômica global consiste na alteração da partilha do mundo derivada do policentrismo, associado à plena revolução da base técnico-científica da produção e do padrão de consumo sustentável ambientalmente.

A conexão dessa totalidade nas transformações mundiais requer o resgate da cooperação e integração supranacional em novas bases. A começar pela superação da antiga divisão do trabalho entre países assentada na reprodução do passado (menor custo de bens e serviços associado ao reduzido conteúdo tecnológico e valor agregado dependente do uso trabalho precário e da execução em longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia ser efetivamente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a pobreza de outros.

As decisões políticas de hoje tomadas pelos países de grandes dimensões territoriais e populacionais podem asfaltar, inexoravelmente, o caminho do amanhã voltado à constituição de um novo padrão civilizatório global. Quem sabe faz acontecer, como se pode observar pelas iniciativas brasileiras recentes. Todavia, elas ainda precisam ser crescentemente aprimoradas, avançando no enfrentamento dos problemas de ordem emergencial, como valorização cambial e elevada taxa de juros, que comprometem a competitividade, para as ações estratégicas que atuam sobre a nova divisão internacional do trabalho.
Revista Fórum

domingo, 18 de dezembro de 2011

Mobilidade versus carrocentrismo: Que futuro queremos?


Artigo de Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA, do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisador do CNPq e da Fapesp. Publicado hoje na Folha.

Ampliar espaços de circulação para automóveis individuais é enxugar gelo, como já bem perceberam os responsáveis pelas mais dinâmicas cidades
Automóveis individuais e combustíveis fósseis são as marcas mais emblemáticas da cultura, da sociedade e da economia do século 20.

A conquista da mobilidade é um ganho extraordinário, e sua influência exprime-se no próprio desenho das cidades. Entre 1950 e 1960, nada menos que 20 milhões de pessoas passaram a viver nos subúrbios norte-americanos, movendo-se diariamente para o trabalho em carros particulares. Há hoje mais de 1 bilhão de veículos motorizados. Seiscentos milhões são automóveis.

A produção global é de 70 milhões de unidades anuais e tende a crescer. Uma grande empresa petrolífera afirma em suas peças publicitárias: precisamos nos preparar, em 2020, para um mundo com mais de 2 bilhões de veículos.

O realismo dessa previsão não a faz menos sinistra. O automóvel particular, ícone da mobilidade durante dois terços do século 20, tornou-se hoje o seu avesso.

O desenvolvimento sustentável exige uma ação firme para evitar o horizonte sombrio do trânsito paralisado por três razões básicas.

Em primeiro lugar, o automóvel individual com base no motor a combustão interna é de uma ineficiência impressionante. Ele pesa 20 vezes a carga que transporta, ocupa um espaço imenso e seu motor desperdiça entre 65% e 80% da energia que consome.

É a unidade entre duas eras em extinção: a do petróleo e a do ferro. Pior: a inovação que domina o setor até hoje consiste muito mais em aumentar a potência, a velocidade e o peso dos carros do que em reduzir seu consumo de combustíveis.

Em 1990, um automóvel fazia de zero a cem quilômetros em 14,5 segundos, em média. Hoje, leva nove segundos; em alguns casos, quatro.

O consumo só diminuiu ali onde os governos impuseram metas nesta direção: na Europa e no Japão.

Foi preciso esperar a crise de 2008 para que essas metas, pela primeira vez, chegassem aos EUA. Deborah Gordon e Daniel Sperling, em "Two Billion Cars" (Oxford University Press), mostram que se trata de um dos menos inovadores segmentos da indústria contemporânea: inova no que não interessa (velocidade, potência e peso) e resiste ao que é necessário (economia de combustíveis e de materiais).

Em segundo lugar, o planejamento urbano acaba sendo norteado pela monocultura carrocentrista. Ampliar os espaços de circulação dos automóveis individuais é enxugar gelo, como já perceberam os responsáveis pelas mais dinâmicas cidades contemporâneas.

A consequência é que qualquer estratégia de crescimento econômico apoiada na instalação de mais e mais fábricas de automóveis e na expectativa de que se abram avenidas tentando dar-lhes fluidez é incompatível com cidades humanizadas e com uma economia sustentável. É acelerar em direção ao uso privado do espaço público, rumo certo, talvez, para o crescimento, mas não para o bem-estar.

Não se trata - terceiro ponto - de suprimir o automóvel individual, e sim de estimular a massificação de seu uso partilhado. Oferecer de maneira ágil e barata carros para quem não quer ter carro já é um negócio próspero em diversos países desenvolvidos, e os meios da economia da informação em rede permitem que este seja um caminho para dissociar a mobilidade da propriedade de um veículo individual.

Eficiência no uso de materiais e de energia, oferta real de alternativas de locomoção e estímulo ao uso partilhado do que até aqui foi estritamente individual são os caminhos para sustentabilidade nos transportes. A distância com relação às prioridades dos setores público e privado no Brasil não poderia ser maior.